Um grande amigo um dia disse-me, os dois com muito whiskey no bucho, que nós tocamos guitarra acústica para nos provarmos perante os nossos pais. Um teste de honra, dignidade e independência para com aquele de quem herdamos o apelido e a pila, para nos provarmos perante o mundo, nus, em palco, só nós com aquela besta de madeira e cordas de aço.
O Norberto, amigo, um dia disse-me, que ele gostava mesmo era de melodia, que precisava dela. Tem-me ficado essa frase na cabeça nos últimos anos.

Ao ver a cara e a expressão que o coração deixa transparecer em todos os que olho durante e após cada concerto do Norberto que tenho a sorte de ver, ou de cada vez que mostro a música dele a alguém, penso perceber que ele os direcciona para vários sítios que nem sempre são acordados pelas coisas que a música desperta habitualmente nas pessoas. O Norberto Lobo tem uma coisa, uma coisa que pouca gente tem. As melodias dele, as decisões dele, as decisões melódicas do Norberto, traduzem um amor pela transparência no acto de comunicar para todos, que não é mais nem menos, que o amor em estado bruto para que todos o possam sentir. Poucos têm a sua transparência.

Tocar guitarra a solo é uma provação nossa, de destreza, criatividade e coração, pelo e para o mundo, numa tentativa de conjugar ideias e emoções que encham todo o universo, um universo que nós ajudamos a clarificar e que gostamos de dar como poucas outras coisas. O Norberto, pelo meio de todas aquelas 6 e 12 cordas que a madeira pouco consegue domar, cria a capacidade de se ser um homem que se multiplica, capaz de ser várias vozes em diálogo, contraditório e harmónico consigo mesmo, em busca de um entendimento das coisas que nos ajude a todos a compreendê-las.

Ao 'fingerpicker', termo tanto americano quanto universalizável para aquele que colhe as cordas, há quem diga que a dádiva suprema que se pode receber é a da mão direita, a mão direita de deus. Ela detém uma veracidade que torna tudo claro, homem e vero, que tantos distorceram pelo Ocidente em anos recentes, pegando nas magníficas tradições de John Fahey e Robbie Basho do blues e do bluegrass revisto enquanto expressão metafísica, da forma mais básica e formulaica. O que eles tardam em reparar, é que uma mão direita todos têm com dois anos a tocar guitarra - mas uma mão esquerda do diabo (com a vontade de deus) é algo que deus dá a gente muito rara (aos poucos que têm a coragem de pensar nela com o tempo e empenho que ela lhes merece).

O Norberto, ao contrário de outros que tentaram portugalizar uma viagem por várias culturas num processo de aglutinação de postais culturais e da música, torna sua uma panóplia de tradições que não só não lhe fogem, como se tornaram parte profunda de si próprio. Nele residem várias músicas primitivas, filtradas por escolas livres que as elaboram e a deixam uma arte popular, que é também técnica e harmonicamente sofisticada ao ponto de se transcendentalizar (também para todos, também comunal).
Estão lá Paredes e o Tejo; Paulinho da Viola e noites e tardes e manhãs de Brasil; Fahey, Charley Patton e o blues como filtro primordial para dor e ardor; mas está lá algo mais, algo de outro para além disso. Um amor por todas as músicas e todos os músicos que vivem deste negócio de sentir para pôr em prática para sentir outra vez e mais - que a música são as pessoas e as pessoas são a música e estamos todos a sentir ser felizes ou a sofrer para que nos possamos salvar. E até lá o Norberto vai fazendo histórias dele, de achar sentimentos e restaurar espiritualidades que tínhamos esquecido, nunca reparado ou desenhado em nós, para que nos possamos alinhar no trilho da luz e da clarividência.

Ouvi-lo é ouvir um gajo livre, feliz, em Lisboa, nos dias que nós vivemos; é celebrar o que mais bonito esta gaita desta cidade e país de dicotomias, tragédias e milagres, possui, na bênção da música. É dizer que talvez devamos mesmo acreditar que podemos ser algo que mais ninguém é, para fazermos todo o resto do mundo sentir que eles são feitos da mesma matéria espiritual que nos construiu e tinge todos os dias, um a um. Aos de cá e aos de outros sítios.

Um brinde de todos nós, cada um que o ouve em disco e em palco, a 'Pata Lenta', esta maravilha de disco, e a todas as outras do Norberto que virão para nos ajudar a perceber como poder sentir os agoras e os do porvir.

 

Texto retirado de http://www.filhounico.com

 

 

publicado por alternativenation às 21:40